
Desmaterializar a materialidade
Reclusão, vida online, professora remota, reunião por Zoom, WhatsApp, Facebook, Instagram, home office, concentração desfocada. O tempo que flui estranho, ora rápido demais, ora moroso, em que é preciso “dar conta” de tudo e ainda lidar com o corpo solitário diante do medo da doença e da morte. A nossa vida sofreu uma reconfiguração durante a pandemia: nada de abraços, nada de contatos, nada de encontros, nada de aglomerações, com a obrigatoriedade da máscara na cara, cobrindo nariz e boca, e os tantos não me toques dos álcoois em gel e das relações.
Nosso rosto, nesse tempo, viveu uma espécie de desmaterialização. O rosto, que é o elemento do corpo que nos identifica, agora persiste em uma dicotomia: ora apagado pela realidade da pandemia avassaladora no rosto mascarado nas ruas, ora extremamente exposto nos frames que acompanham a vida virtual, no retrato do quadradinho da tela em movimento. Dois lados de uma mesma moeda que é a nossa existência no mundo com suas relações de afetos e afetações.
Muitos meses de reclusão se passaram, e reacendeu a gana em estar junto, o fogo de artista-professora que precisou se reestruturar, inventar, que olhou para si na telinha e viu um impulso em se desconfigurar, transfigurar, tornar-se outra, explodir. O rosto na tela enquadrado se tornou o lugar remoto, que é a casa de cada um exposta no Zoom. E foi por sonhar que é possível fazer juntas, estar juntas mesmo distantes, que me propus a estranhar-me na tela, desconfigurar o lugar quadrado e compartilhar essa ação expandindo as experiências cênicas para esse lugar, espelho que reflete a vida atual.
Depois de tanto experimentar a materialidade nos corpos concretos, estava eu ali, sozinha. Por isso me movi a organizar um grupo de estudos com pessoas maravilhosas e muito abertas à troca de ideias, mas não dei conta: não quis me expor mais nas redes, não quis fazer live. O Instagram desatualizou. Sumi. Mas, ainda assim, permaneci olhando e vivendo em mídias e dando aulas, onde prefiro não me olhar e ficar só na matéria da fala. Depois de meses ausente, retornei para o grupo de estudos, dei um aceno e manifestei a vontade de experimentar essa desmaterialização, era agosto de 2020. E assim aconteceu a Live estou viva.

Imaginei assim:
“uma conversa / ação de mascaramentos e gambiarras, textos podem ser lidos, vamos sobrepondo camadas ao corpo, até encher as janelinhas do computador, vamos mascarando e enchendo a imagem que aparece no zoom”.[1]
A intenção era romper essa identificação de rosto, do retrato que nos representa na tela, para deixar que o efêmero nos transmutasse, para perder o rosto na impermanência de uma desconexão conectada.
A ação aconteceu com quatro participantes do grupo de estudos e foi muito estranha, mas ao mesmo tempo muito divertida. Cada um no seu quadrado se transfigurou em um fluxo muito dinâmico e leve. Eu li O corpo utópico (sempre leio O corpo utópico, porque acho que incita olhar o corpo caleidoscópico) e fomos nos mascarando, nos transformando em imagem. Ao final, estava vibrando num frisson, mas o resultado foi sinistro a ponto de dar arrepios depois, ao pensar nisso como imagem, resultado. Senti medo. Vi os frames, encontros das figuras extraordinárias, transfiguradas, desmaterializadas naquele instante congelado de conferência pelo Zoom. A sensação foi de um vácuo: queria abrir a percepção, mas me fechou. Tudo muito intenso, muito estranho, restando a frustração em virar imagem quando a coisa toda é materialidade, mas ali desmaterializou. Chapou. Ficou em suspenso.

Depois foi o Carnaval silencioso. Fui convidada para uma oficina online, virtual, mas em BH[2]. Era o carnaval de 2021, com todo mundo recluso já a mais de um ano e esse fogo dessa época de carnaval que evoca o corpo fervilhante em lembranças de suores e corpos se esfregando. Na chamada, falei que iríamos experimentar juntas, e ao final quem sabe um samba…. E foi muito emocionante. Materialidades sobre o corpo no carnaval desmaterializado, fomos às lágrimas: “tristeza por favor vá embora, minha alma que chora está vendo o meu fim, fez do meu coração a sua moradia, já é demais o meu penar, quero voltar aquela vida de alegrias, quero de novo cantar”, soava na voz de Beth Carvalho, em um vinil tocando ao meu lado.
Segui exercitando o desmaterializar. E foi nas salas de aulas das artes cênicas que consegui sentir o desafio que é fazer arte durante a pandemia, arte e pesquisa. Falar de mascaramentos e transmutações efêmeras, nesse momento, abre um campo multifacetado de imaginações: somos mascarados, juntos estamos mascarados ― que corpo é esse desses jovens em meio à pandemia? Sempre me questiono sobre as sequelas sentimentais com as quais vamos nos deparar à frente.
Entrei em quatro turmas diferentes, fazendo a coisa acontecer pelas parcerias artísticas e acadêmicas. Na sala da turma de máscara da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da professora Erika Schwarz, eu estava num momento crucial da escrita da tese, numa espécie de encruzilhada, e o encontro acabou sendo mais coberto de referências e embasamentos teóricos. Foi filosófico e poético, instigando as alunas a experimentarem no corpo, em tempos de reclusão. Saí acreditando na potência do movimento. Entrei novamente em ação na sala de aula de meu orientador, professor Marcos Bulhões, e foi muito intenso e um tanto tenso, pelo peso dessa relação de escritas e forças, e desatei a falar. “Palavras ao vento”, disse ele. Na ação, li mais uma vez O corpo utópico como uma obsessão em contar essa história do percurso que me trouxe até aqui, em fugir do drama, mas estar até o pescoço mergulhada na dramaticidade de ser corpo ― Estamos VIVAS, nome dado à ação. Fiz-me retrato em movimento ,deformado diante do quadrado da tela. Vesti os livros.

Em seguida, mais uma vez em Minas, na turma da Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg), convidada pela professora Andréia Bernardi, onde exercitei algo muito onírico. Andreia participou do Figurino em ação na primeira imersão em Beagá, juntamente com a mãe dela. Nos cruzamos no Projeto Confluências, trocamos muitas ideias, e daí surgiu uma amizade e parceria. Ela havia me convidado para o “Carnaval silencioso” e agora para falar na turma dela da disciplina de Ateliê em artes visuais. Propus para a turma as experimentações e levei comigo um buquê de rosas brancas, como uma oferenda. O perfume das rosas se misturava aos muitos tules e máscaras do Acervo FemA com os quais fui me mascarando, e meu corpo inebriado pela ação se reconfigurava a cada palavra que lia pela fresta do mascaramento, num jogo, novamente, com O Corpo Utópico e a pergunta: onde aflora a intuição durante a participação? Também brincamos com a estrutura da plataforma Teams, em forma de arenas, onde cada corpo se posicionava ativo. Foi leve, foi barroco, as flores e as tantas texturas no corpo, e ouvimos: “para quem quer se soltar invento um cais, invento mais que solidão me dá, invento em mim o sonhador”, nas vozes de Milton e Criolo. Finalizamos a ação, mais uma vez emotivas, nessa vivência sempre muito viva.
Mas foi na última turma na qual entrei que pude me permitir me entregar ao tempo, e foi decisivo. De início, me atraquei de novo a leitura d’O corpo utópico, e percebi que estava sendo mesmo uma obsessão. Num certo momento, me desprendi da leitura, e mergulhei na materialidade junto com os outros. Foi quando o silêncio da minha voz, que é corpo, se fez, que me vi integrada ao todo, nesse lugar que não existe e que ao mesmo tempo é a casa de cada um refletida em imagem. Coloquei a música do Gil no vinil, coragem para suportar!
Nessas ações online, não tinha conseguido exatamente interagir, assim como acontece muitas vezes quando performo. Entro num tal estado de tensão e alerta em relação ao tempo presente, que toda vez que estou em ação atravesso o que foi pré-combinado e faço o que o momento pede. Mas ali, imersa sob tantas camadas, mesmo sufocada, pude respirar pelas frestas em mais de uma hora de mascaramentos, com interrupções ― fechava a câmera por segundos para poder ver os outros. Nesse esticar do tempo, pude relaxar na ação, algo raro. Me envolvi com o cheiro das toalhinhas de mesa e dos passantes de crochê e panos de prato que eram de minha tia avó, e que tinha ganhado um dia antes, como herança. Me envolvi no cheiro do armário de minha tia-avó, e pude parar, me ver e recomeçar tudo mais uma vez de outro jeito, e pude também olhar cada em suas janelas, vi as casas, os ambientes expostos, e o movimento dos corpos em ação que desapareciam diante da tela, pois seus rostos estavam ali desconfigurados de presença: estavam ali, mas não estavam.
A ação da Live estamos vivas proporcionou, segundo os participantes, “um lugar de observação” (Miguel Alano), onde o espaço do frame do “zoom ganha outra dinâmica” (João Paulo) e “a possibilidade de encontrar vários eus transmutados pelo começar e recomeçar de novo a ação” (Tarsila). Chico Lima, depois da ação, perguntou: “é um rosto ainda?” E fez do “corpo presas que saiam dos olhos”. Gustavo sentiu prazer na experiência e “ao vestir flores mortas, sentia o cheiro que exalava em seu ambiente”, que o instigou a “ter vontades de criança, num estado de espírito” que surgiu pela “sobreposição de lembranças”. Para Tarsila, foi “intensa a relação com os objetos, “e sentiu vontade de andar pelo ambiente, carregando o computador pela casa ― até que a avó levou um susto”.
“Não ter a perspectiva do final, não ter o ponto de chegada, desmonta a ação pela duração” (Marcos Bulhões), isso permitiu a Clarice “curtir o material, se dar o tempo, sem pressa em colocar tudo o possível”, e, na continuidade, desmaterializar-se, “tirar a capa”. “Se montar acessa algo que é mágico, ritualístico, como no cosplay, um portal entre o imaginário e o real”, como comenta Gustavo. “A radicalidade do fluxo e da impermanência, do improviso e da duração, permitiu a desmaterialização dos rostos, gerando um jogo Zen”, disse Marcos Bulhões, pois “perder o rosto é terapêutico”, e continua, “nessa ação que não tem edição nem síntese, desconfigura-se a cabeça, com a qual nos identificamos: 3×4, num devir de desmaterializações, desconexões, se desvinculam. O colapso do eu”. Esther sentiu um alívio, como se tirasse também as tantas coisas que envolvem o corpo hoje, e concluiu: “é muita coisa na cabeça!”
